Ingrid era ídola no futebol feminino de Manaus quando recebeu o primeiro contato do Clube do Povo. Cobiçada pelos principais centros do país, ela esperava aproveitar as festas de final de ano antes de decidir seu futuro, mas descobriu que o destino não tira férias. A insistência vermelha abriu os olhos da jogadora de elite para o incipiente projeto que surgia em Porto Alegre, e foi suficiente para convencer a zagueira a abraçar mais um desafio na carreira. Hoje, passados pouco mais de quatro anos do ‘sim’ ao Inter, Sorriso está na história como a primeira atleta a completar 100 jogos pelas Gurias Coloradas.
Os desafios fazem parte da vida de Sorriso desde muito antes do apelido dado pelo estilo risonho e alegre da paulista da capital. Ainda criança, com cinco anos de idade, Ingrid começou a encarar obstáculos comuns à maioria das meninas apaixonadas pelo futebol. Sem uma escolinha feminina para frequentar, a filha da dona Onisia deu seus primeiros passos com bola ao lado de garotos, que foram seus companheiros de time no Tiger-Lusa Futsal.
Apoiada pelo técnico ‘Vagnão’ e por uma professora de sua escola, Sorriso participou, ao lado de outras 200 meninas, de uma peneira para o Centro Olímpico. Aprovada, não demorou para sofrer com outro símbolo histórico da desigualdade de gênero no futebol: a desorganização das categorias de base. Tímida, a jovem zagueira foi rapidamente integrada à categoria profissional, e teve de acumular experiência “na marra” para não ficar para trás na luta por espaço.
“A transição é meio complicada. Sempre joguei com pessoas mais velhas, o que, em algum momento, foi bom, porque ganhei experiência e aprendi muito cedo. Disputei uma copa Sub-17 que existia em São Paulo, mas não tinha Sub-20, então joguei no profissional com 16 anos, em um Campeonato Paulista. Amadureci muito rápido. Hoje, as meninas têm que valorizar muito o que a gente fez lá atrás. Agradecer, aproveitar e dar valor.”
Pioneira por natureza, Sorriso deixou o aconchego do lar e encarou mais de 2.500km de distância para disputar, em 2013, a primeira edição do Campeonato Brasileiro Feminino organizada pela CBF. Com o Botafogo-PB, a zagueira adquiriu aprendizados importantes para os passos seguintes de sua carreira, que seria vice-campeã estadual com o São Paulo e passaria por São Bernardo, Kindermann e XV de Piracicaba antes de viajar para ainda mais longe.
Em 2016, Ingrid atingiu um novo patamar no futebol. Pelo 3B/Iranduba, ela ajudou a colocar o estado do Amazonas em evidência nacional, integrando geração que atingiria uma histórica semifinal de Brasileirão na temporada seguinte. Heroína regional, viveu, inclusive, a emoção de ter seu nome cantado por uma Arena da Amazônia lotada, e virou um dos principais nomes do esporte no Norte do país
“Nunca sonhei em passar por isso. Chegar, fazer história e ver que, no meu retorno, a torcida foi ao Aeroporto. Cantavam meu nome. Pra mim, foi muito satisfatório. Até hoje, tem ônibus com foto minha. Lá no 3B, tem cartaz. A torcida, acho, era um pouco carente de futebol, e nós colocamos mais de 25 mil torcedores na Arena para uma semifinal contra o Santos. Fizemos o que deveria ser feito por lá há muito tempo.”
Conformismo é uma palavra que não existe no dicionário de Sorriso, que abriu mão da quarta colocação nacional para disputar a série A2 em 2018. Loucura? Para muitos, sim. Afinal, ela trocava as reverências de Manaus inteira por um “tiro no escuro”. Campeão gaúcho em 2017, o Inter sequer tinha vaga garantida nos grupos da segunda divisão, e precisaria, primeiro, encarar uma seletiva, para só então entrar de vez na luta pelo acesso. Nesse roteiro, Ingrid enxergou mais um desafio para testar sua ambição.
“Gostei muito do projeto, vi que o grupo era bom, conhecia algumas atletas, e resolvi vir para cá. Gosto de tentar algo novo, e vim para fazer o que eu sei, que é me dedicar a cada dia e fazer história. O Clube me recebeu de braços abertos. Desde a diretoria a cada torcedor que me recebeu de forma incrível. Literalmente, no meu primeiro ano já me sentia em casa.”
São Lourenço da Mata-PE, 26 de março de 2018. O dia da estreia de Sorriso vestindo vermelho. O dia em que as Gurias superaram trânsito e adversário para brilhar para o país. Três horas de engarrafamento até ameaçaram a disputa da partida entre Clube do Povo e Náutico, que teve como sede a Arena Pernambuco, mas não foram suficientes para afastar as coloradas do sonho nacional. Dentro de campo, os milagres da goleira da casa deixaram para os pênaltis a decisão de quem seguiria vivo no Brasileirão A2, e o Inter, impecável, converteu suas seis batidas da marca da cal, uma a mais do que o Timbu. Avançávamos para os grupos!
“No meu primeiro jogo, eu senti a pressão. Vi como era diferente. Foi bem difícil,mas a gente conseguiu esse feito.”
Quando chegou a Porto Alegre, a zagueira imaginava cumprir seu contrato de um ano – período até extenso se comparado à realidade de então do futebol feminino brasileiro – para depois dar sequência à carreira em outros clubes do país, e o gosto amargo da desclassificação no Nacional e do vice no Gauchão poderiam ter tornado ainda mais simples a decisão de partir no final da temporada. Mas Sorriso decidiu ficar. Desta vez, não pelo desafio, e sim pela acolhida que encontrara na capital gaúcha.
“Eu peguei, digamos, quase o começo, e foi bem difícil. Deslocamento para treinos, essas coisas. E hoje eu vejo que estamos no Sesc com toda a estrutura. Mudou muita coisa, e eu vejo essa evolução no futebol feminino aqui do Inter. Estão valorizando a gente, e isso foi um dos motivos que me fez ficar e acreditar. A torcida também tem um peso muito grande. Tenho um carinho enorme, de verdade.”
A permanência logo se provou acertada. No começo de 2019, Sorriso conheceu Maurício Salgado, técnico que, nas palavras da própria zagueira, agregou muito ao elenco colorado. Ainda no início do ano, o Inter recebeu a notícia de que disputaria a primeira divisão do país, e de cara mostrou que estava pronto para a elite ao vencer sete das nove rodadas realizadas antes da parada para a Copa do Mundo da França. Já durante o Mundial, o Clube do Povo contratou aquela que seria a grande parceira de Ingrid: Bruna Benites.
“Sou muito feliz jogando ao lado dela (Bruna Benites). Não somente dela, mas da Isa também, de todas ali. A gente se entende só com um olhar dentro de campo, nem falamos muito. Estamos há três anos juntas, e acho que a parceria foi dentro e fora de campo. Somos bem amigas. Ela é uma pessoa incrível, fora de série. Muito do que sei hoje foi por conta dela, que me orienta bastante. Somos uma parceria, espero, para a vida toda.”
Após encerrar o turno de pontos corridos do Campeonato Brasileiro de 2019 na quinta colocação, o Inter enfrentou o Flamengo nas quartas de final. Sediada no Sesc, a partida de ida do primeiro duelo eliminatório disputado pelas Gurias na elite nacional teve o placar inaugurado exatamente por Sorriso, que elege esse como o preferido dos oito gols que já marcou como atleta colorada.
Quatro meses se passaram do gol contra as Meninas da Gávea para a primeira taça que Sorriso ergueu com o Inter – a do Gauchão de 2019. Titular absoluta na campanha campeã estadual, a camisa quatro pôde atestar o espaço que conquistava no coração da torcida durante a festa do título, tamanhas as declarações que ouviu da torcida presente no Estádio 19 de Outubro, em Ijuí.
Daquele momento em diante, surgia uma idolatria que jamais parou de crescer, e que hoje está eternizada tanto nas arquibancadas coloradas, que a cada jogo recebem a faixa que carrega o rosto da xerife, quanto no braço de Ingrid, que leva a tatuagem do troféu. Desde então, mais outros dois foram conquistados por Sorriso, todos eles em cima do maior rival, que nunca venceu uma partida da zagueira.
“Aqui, realmente, eu acho que estou deixando minha marca, e espero que com isso, futuramente, se um dia eu sair daqui, eu possa retornar e fazer coisas novas, porque aqui me marcou, está marcando minha vida. Tenho uma tatuagem do Gauchão. Pode ter certeza que, isso aqui, vou levar para o resto da minha vida. Cada torcedor, o Clube em si, esse carinho, esse envolvimento.”
Junto das conquistas estaduais, a caminhada da camisa quatro no Inter também já proporcionou outros grandes momentos em nível nacional. Após retornarem às quartas de final em 2021, temporada na qual encerraram a primeira fase com a terceira melhor campanha geral, as Gurias atingiram uma inédita semifinal do país no ano passado. É justamente apoiada nessa constante evolução individual e coletiva que Sorriso alicerça o seu grande sonho de um dia conquistar o título brasileiro.
“Arrepia (pensar). Acho que vai ser um dos momentos mais felizes da minha vida. Almejo isso há muito tempo, há muitos anos. Estou peleando para construir isso, e esse feito vai vir. Vai ser um momento incrível, porque eu acho que nós, como time, como elenco todo, merecemos. Muitas pessoas falam que a gente está ali por sorte, por acaso, mas a gente sabe que não, e come pelas beiradas.”
“A minha família é o Inter, vocês são minha família.”
Ojogo 100 de Sorriso alimentou ainda mais o sonho de ídola e torcida. Contra o Real Brasília, neste sábado (28/05), o Inter reencontrou o rival que o havia eliminado da Supercopa do Brasil no início do ano, e flertou com o mesmo roteiro de fevereiro durante a etapa inicial, encerrada com vitória de 1 a 0 das visitantes. No segundo tempo, contudo, qualquer fantasma do passado foi corrido para longe, e as Gurias chegaram à virada com gols de Lelê e Duda, resultado que manteve as coloradas na caça pela liderança.
Antes da partida, Sorriso foi surpreendida por uma homenagem especial do Clube do Povo. Após atravessar corredor de aplausos formado por suas companheiras de elenco, a zagueira se deparou com o ídolo Taison, que a aguardava com uma placa e uma camiseta comemorativas em mãos. Reconhecendo o feito inédito da zagueira, o craque do masculino entregou os presentes do Inter para a xerife feminina, que enfrentou a equipe de Brasília levando o número 100 às costas.
Um filme passa diante dos olhos de Ingrid quando questionada sobre o sentimento com que se torna a primeira jogadora não só da história das Gurias Coloradas, mas do futebol feminino gaúcho a atingir uma centena jogos por uma equipe. A zagueira não esquece de tudo que abdicou em nome da carreira como jogadora, mas deixa claro que as escolhas tomadas no passado não despertam nenhum arrependimento, e sim orgulho, acompanhado da humildade de quem compartilha o sucesso do presente com as pessoas que acreditaram em seu potencial no passado.
“Aprendi muitas coisas com cada atleta, com cada comissão que passei. O futebol é um dom, porque não é para qualquer pessoa abdicar de muitas coisas para estar aqui. Agradeço muito a minha família. Primeiramente a minha mãe, que sempre me apoiou e me incentivou, desde que eu era pequena. Vai um pedacinho para cada pessoa que fez história comigo, que estava comigo na boa e na ruim. A minha família é o Inter, vocês são minha família.”
Com Sorriso e companhia, as Gurias voltarão a campo no próximo domingo (05/06), às 11h, para a disputa de Gre-Nal válido pela 11ª rodada do Brasileirão de 2022. Depois do jogo, que será disputado em Gravataí, o calendário reserva mais quatro partidas para o Inter na primeira fase nacional. Duas em casa, diante de São José-SP e Santos, e outras duas como visitante, contra Corinthians e Kindermann.
Como sempre na biografia colorada, o apoio da torcida será fundamental para Clube – e ídola – seguirem trilhando feitos relevantes dentro dos gramados. Se já é suficiente para eternizar a craque em nossa história, a trajetória até aqui construída por Ingrid passa longe de estar encerrada. Juntos, afinal, podemos muito mais. Ou melhor, buscaremos muito mais, pois somos do Inter. E nenhum desafio é maior do que a força de quem representa o povo que ergueu um gigante das águas.
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