Vocês devem estar cansados de me ouvirem escrever do Liverpool pois quase todos os meus exemplos são inspirados no clube do norte da Inglaterra. Mesmo assim, repetirei outras referências que - ainda em escalas e realidades diferentes - servem como parâmetro ao Inter de maneira prática, visto que somos um clube semelhante do porte comercial e estrutural, mas em seu contexto particular.
Os Reds quebraram um jejum nacional de 30 anos mesmo sem o maior orçamento do país há tempos, passando por uma série de tentativas e estratégias erradas até encontrarem um rumo, sem antes, perderem finais e bateram com a cara na parede. Em grande medida nossa seca de 41 anos - desde a conquista de 1979 - incomoda e precisa ser concentrada com todos os esforços, mas também não somos o clube mais rico ou com maior poderio de investimentos. Qual receita utilizar, então?
Recentemente, utilizei o exemplo deles para pensar o quanto um time vitorioso, inevitavelmente, perderá muito antes de alcançar a glória máxima. Muitas vezes discuti e sigo discordando em relação a grande parte dos amigos colorados de que, enquanto a maioria da torcida e imprensa prefere buscar um bode expiatório (quase sempre o treinador ou um ou dois jogadores), o problema raramente é visto de maneira ampla, estrutural, aberta, em que todas as etapas de uma longa jornada estão sendo respeitadas.
Pensar a longo prazo é um conceito conhecido e repetido por todos, mas que na hora da verdade, quando é preciso avaliar as ações no campo prático, todo comentarista (que momentos antes cobrava planejamento ou convicção) a utiliza para rotular fracassos. Existe um motivo simples para isso, que é a própria dinâmica da realidade: mentalmente é mais fácil correlacionar causas imediatas ao invés de traçar um grande emaranhado de correlações não sempre causais, ou seja, de causa e efeito imediato.
O Inter pode ter um déficit de 100 milhões a curto prazo, mas se vencer e investir em um jogador caríssimo, dirão que o clube "estará fazendo, assim, mais dinheiro, para poder pagar esse mesmo déficit". Inverte-se a lógica completamente, pois, enquanto somente avaliamos o curto prazo, defendemos, ao mesmo tempo, posições diretivas de mesma ordem: imediatistas, que até podem surtir efeito, mas não criam um ambiente positivo na sequência, aumentando a competitividade da instituição além de meros 2 ou 4 anos.
Vejamos o caso do clube inglês: uma nova gestão americana comprou o LFC em 2010 mas seus frutos só ocorreram em grau de título, em 2019. Nove anos depois, após incontáveis decepções, foi-se de temporada em temporada subindo degrau em degrau, aprendendo a errar para acertar lá na frente. No comando técnico, um treinador que nunca pode vencer antes de três anos na casamata de seus clubes venceu justamente em sua 3° temporada (após perder três finais). Jurgen Klopp, inclusive, sempre enfatiza que seus trabalhos só darão frutos em três anos e que 3 é o número de sua vida. Para meu desgosto, por outro lado, ouvi em um programa esportivo, recentemente, a célebre frase de um comentarista: "não ganharam nem gauchão", como se isso fosse argumento para uma análise de qualquer gestão. Se quiseremos infantilizar o debate a tal ponto, encerramos a discussão dando o exemplo de que Vitório Píffero é campeão do mundo ou a gestão do Liverpool foi péssima por 8 anos, porque não havia vencido nada... Não é esse meu objetivo, pois acredito que podemos e devemos mais, não vivendo de frases prontas, que atraem por suas aparentes soluções mas que de conteúdo não dizem nada.
Seguindo com outras boas medidas, na parte da comissão técnica o Liverpool trouxe novos nomes visando mitigar os mínimos erros ano após ano, quando se descobriu um grande número de bolas perdidas nos laterais, como resultado, trouxeram um treinador apenas para ensinar estratégias nas cobranças. Ademais, um centro de dados e de política de contratações praticamente únicos, moldados em uma série de elementos que apenas os olhos não mostram mas a tecnologia sim, trouxe, com as exceções de Alisson e Virgil Van Dijk, somente nomes desconhecidos ou menos considerados.
Assim, façamos um exercício de raciocínio: como que um dos melhores técnicos do mundo, com uma estrutura financeira superior a nossa, só consegue dar resultado após mais de 30 meses, e aqui, com muito menos (dinheiro para contratar, estrutura, saídas de jogadores muito maiores, pressão por resultados, viagens imensamente mais desgastantes) espera-se que alguma gestão ou treinador faça algo antes?
Claro que teremos exemplos de inúmeros casos, o Inter venceu com Celso Roth, o Flamengo com José Luis Andrade, mas precisamos avaliar que, quando disputa-se contra 20 rivais amadores, em muitos casos, clubes desestruturados irão vencer, o que não acontece em ligas com clubes que atuam de maneira planejada. A análise deveria levar em conta, portanto, que os primeiros a arrumarem a "casinha" serão os clubes vencedores a longo prazo e atualmente conta-se nos dedos os trabalhos desse tipo no continente.
Essa resposta, em larga medida, mostra como todos os clubes - com pequenas exceções recentes como o River Plate, Del Valle e o próprio rival, Grêmio - vivem em uma cultura de "planos de governo e não de estado", mas sempre de maneira mais errática devido as pressões culturais locais.
Não faltam modelos de como fazer e precisamos arregaçar as mangas e trabalhar para isso, mas, antes, faz-se necessário sair de um estado de anomia em que o debate resume-se ao ganhou ou não ganhou, julgando trabalhos incompletos ou oriundos de gestões sem tempo ou visão para tal, que mantém essa roda de incompetência e acaso.
É justamente pegando os bons exemplos, vendo o que foi feito, traduzindo para nossa realidade, que poderemos colher um clube mais estruturado. Eduardo Coudet, nesse aspecto, é o nome perfeito, sendo talvez um dos profissionais mais capacitados e que precisaria de muito mais do que 2 anos de Beira-Rio. Que tal, então, renovarmos para mais 2, 3, 5 anos?
Como de costume, proponho um exercício: como seria o Pelotas com Pep Guardiola? um time que tentaria tocar a bola, linhas altas, que erraria muitos passes e seria ineficiente, por quê? sua qualidade e a classificação de seus jogadores (isso sem falar da confiança, outros detalhes) não estariam em sintonia, e isso muito provavelmente geraria um time ineficiente, ou seja, um trabalho sem futuro. O caminho do Inter é, portanto, encontrar o estilo e potencializá-lo ao máximo com as características certas dos jogadores possíveis a nossa realidade. É por isso que o Burnley (time mediano da Premier League) é um exemplo de sucesso jogando o futebol mais feio do país, pois existem inúmeras formas de se jogar, cabe estar ciente das ferramentas que possui para, posteriormente, utilizá-la da melhor maneira. No Brasil antes mesmo de se "ter" esse elenco e moldá-lo minimamente a certo estilo, o treinador já foi mandado embora ou estão pedindo sua cabeça. Em vista disso, não importa o técnico ou quão genial ele seja, é preciso existir um contexto que faça uma ideia, uma metodologia e um conceito dar "liga" nessa relação. Aqui, somente culpamos o técnico e pouco se vê sobre o contexto. O melhor técnico para o City não é para o Burnley, e vice-versa.
Finalizando, em um 2020 em que o tempo de treino praticamente não existirá, precisamos imediatamente repensar o tempo de trabalho e aumentar a estadia de Chacho o mais longe possível (independente de qualquer resultado), pois só assim teremos uma diretriz clara e que possa andar lado a lado com as outras áreas do clube, ao mesmo tempo em que atacamos outros detalhes específicos (como nos casos acima: política de contratações, estrutura, reorganização financeira, base, comissão técnica, etc.).
Se quiseremos voltar a conquistar o título nacional precisamos de uma vez por todas utilizar o exemplo do próprio Liverpool, que mesmo sem resultado nos primeiros anos já dava claros sinais de que estava se tornando cada vez mais competitivo. Para isso ocorrer, entretanto, primeiramente precisamos reavaliar nossas próprias concepções e o que exigimos dos dirigentes ou treinadores, em vista de novas conjecturas que saiam do senso comum.
VOCÊ SABIA?
-> POLÍTICA DE CONTRATAÇÕES
Billy Beane, famoso por criar a estratégia Moneyball - representada no filme de Brad Pitt - que visa detectar jogadores subvalorizados usando dados e estatísticas, disse que a estratégia do Liverpool é claramente muito orientada a dados e que Klopp está perfeitamente envolvido em todo o processo, o que faz com que as transferências funcionem de maneira brilhante.
"Ele [moneyball] tem muitos significados diferentes. A suposição quando esse termo é usado é que você sempre procura gastar o mínimo possível, o que na verdade não poderia estar mais longe da verdade", disse Beane ao Liverpool Echo.
"Estamos tentando encontrar ativos subvalorizados e esperamos que o valor do jogador continue aumentando. No Liverpool, um ótimo exemplo é Salah. Eles gastaram cerca de 40 milhões de libras na Itália, o que é muito dinheiro".
"Para mim, esse é um ótimo exemplo de exploração de uma vantagem de dados - gastando muito dinheiro, mas obtendo muito mais valor do que o que as pessoas esperam! Quando criaram o 'comitê de transferência', eles foram ridicularizados por isso e como acabou, não parece que foi uma péssima ideia.
"Estou falando como alguém que não trabalha lá, mas provavelmente tem uma ideia do que está se fazendo. É óbvio que eles criaram um processo muito colaborativo, orientado por informações, e eles têm um técnico que se envolve perfeitamente nesse processo.
"Esse é o objetivo de todas as equipes esportivas: fazer o que o Liverpool fez. Realmente o que eles estavam dizendo era que eles iriam criar um processo, impulsionado por dados, colaboração e informação.
"Ninguém está ridicularizando agora, não é? Então, tiramos o chapéu para toda a organização e para Edwards (dirigente do Liverpool). Ele teve tanto sucesso e realmente não recebe tanto crédito internacional quanto deveria, porque é brilhantemente executado."
A abordagem de Liverpool envolve o uso de um "comitê de transferência", composto pelo técnico Jurgen Klopp, diretor esportivo Michael Edwards, membros da equipe de observadores e executivos do clube.
Os Reds geralmente não gostam de mega-superstars, pois não podem pagar tanto dinheiro quanto clubes como o Man City ou Chelsea - no entanto, assinaturas inteligentes como Virgil van Dijk, Sadio Mane e Mohamed Salah destacam o sucesso do clube e seu 'departamento de obsevação e análise de dados'.
Por Alan Rother