A extensão da pandemia tem gerado inúmeras dúvidas sobre o futuro de todos os setores, não diferente no mundo do futebol. Em muitos casos, o impacto financeiro nas instituições gera pressões políticas por uma perspectiva de retorno das atividades em diversas áreas, aumentando a relevância de argumentos não científicos e de um tema em que o senso comum está longe de ser suficiente.
Por isso, visando buscar respostas e soluções, a FPF (Federação Paulista de Futebol) montou um comitê com o objetivo de elaborar um protocolo de segurança para o momento em que a bola voltar a rolar. Sob a liderança de Moisés Cohen, presidente da Comissão Médica da FPF, doutores dos clubes das três divisões do Estado se reúnem virtualmente para debater ideias. Em meio a esses profissionais, o Dr. Renato Anghinah, neurologista, é representante do Sindicato de Atletas Profissionais do Estado de São Paulo, deixa claro que jamais houve debate sobre qualquer data para retorno do futebol entre os médicos. Em entrevista ao Esporte Interativo, Renato evidenciou os perigos de se pensar a questão sem argumentos consistentes:
"Estamos discutindo normas que deem segurança quando for decidido, e se for decidido, que vai haver o retorno do futebol. Quando voltar, todo mundo volta jogando? Ou será melhor uma volta gradativa, primeiro com treinamento? (...) não existe fórmula mágica, até porque não envolve somente jogadores. Envolve público, comissão técnica, por exemplo pessoas com mais de 60 anos ou alguém do grupo de risco entre os treinadores e outros profissionais de segmentos diferentes. A própria imprensa vai se colocar em risco".
"Quem tiver respostas prontas, algum médico ligado a qualquer Federação falar: 'vai voltar assim' ou 'vai voltar tal dia' está fazendo exercício de futurologia". Como ainda não atingimos o pico da curva, sugerir data para retorno no Brasil, de acordo com o médico, não passa de palpite. "Para podermos convergir para algo mais seguro para todos os envolvidos, vamos primeiro depender da evolução da doença, que é nova, então ninguém tem respostas. É preciso observar diariamente".
O diretor do comitê médico da FIFA, Dr. Michel D'Hooge, projetou que o futebol não deve voltar a ser disputado até setembro, gerando uma expectativa de retorno, ainda que distante. Segundo o Dr. Renato Anghinah, a perspectiva no Brasil deve ser ainda maior: "É achismo. Existe uma pressão grande dos times em todo o mundo para voltar. E é preciso lembrar que ele está na Europa, que está pelo menos um mês na nossa frente. Se uma pessoa da FIFA faz esse prognóstico, pensando em países de primeiro mundo, projetando algo para quem sabe depois de setembro, pobres de nós, não é mesmo?".
"Pra mim, é achismo. Eu tenho o direito de achar, ele tem o direito de achar, Lula tem o direito de achar e Bolsonaro tem o direito de achar. Mas saber é diferente. Saber que tal remédio funciona, qual data é mais lógica dentro de uma curva de contágio, quão grande será o tempo para flexibilizarmos a aproximação das pessoas. Acho que ele falou sem nenhuma propriedade".
"Se fala muita bobagem. Imagine que você está suando e está dentro da área, um jogador colado no outro, respirando a 10, 20 centímetros um da boca do outro. Cuspir no gramado é o menor dos problemas! A transmissão é por gotícula, ou seja, pegou na mão, passou na boca, passou nos olhos, aconteceu. Se há preocupação com cusparadas no campo, então é preciso obrigar a utilização de máscaras (...) Não sei cientificamente qual a rapidez de uma grama normal na absorção do cuspe. Talvez depois de cinco minutos ele não esteja mais lá. Em gramado com drenagem, pode ser que em dois minutos não esteja mais lá. Ou seja, só se o jogador cair de boca no cuspe nesse período. Qual a chance dele pegar coronavírus assim? Então medidas inteligentes baseadas em ciência, vamos apoiar. Bobagem? Não".
"Vamos pensar em um clube que tenha um hotel dentro de sua sede. Aí tudo bem, todo mundo fica concentrado até começar o campeonato. Não saem os jogadores, a comissão técnica, equipe de cozinha, equipe de faxina, ou seja, não sai ninguém. Nesse caso haveria o controle total, em isolamento, para o treinamento. O que circulou, ou não, está dentro daquele grupo e acabou. Ninguém leva nada pra família e nem traz de fora. Mas pense no Brasil: quantos clubes teriam condições de fazer algo desse tipo?".
Com a curva de contágio em crescimento no Brasil, é difícil prever uma data para o retorno de qualquer atividade, porém, quando for possível, o treinamento certamente será muito diferente. "Num lugar do gramado você tem dois ou quatro atletas treinando com distanciamento social. Preparador de longe, não existe contato. Imagine então uma data em que haverá um grupo inteiro no vestiário. Certamente não vai voltar desse jeito, vai voltar de maneira paulatina", conclui o neurologista.
"É uma doença que pode levar à gravidade e não tem proteção. 'Ah, mas eu sou um atleta, então não há problema', isso não é verdade. Afeta todo mundo. Quem tem comorbidades pode ter consequências piores, mas você pode ser jovem, saudável e o vírus ser trágico da mesma maneira". Ainda que grande parte dos jogadores está fora do grupo de risco, como será explicado, o ir e vir de cada um pode se tornar um risco para quem está ao redor de todos eles.
"Sobre as comorbidades, o maior risco é de coração e, geralmente, quem tem algum tipo de problema já está fora de um elenco profissional. Alguém com diabetes dificilmente vira jogador de futebol. Outro exemplo, aqueles que são portadores de DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica) tem como causa o tabagismo e, por isso, não devem fazer parte do esporte de alto rendimento. Só por aí nós já falamos de 90% do grupo de risco, por isso grande maioria dos jogadores está fora. A questão é que eles passam muito tempo juntos com outros profissionais e ainda terão o perigo de cada um ir para sua casa".
"Depende do estágio da flexibilização. Se tenho um jogador que testou positivo treinando de um lado e outro que não testou trabalhando outro lado, exercendo um distanciamento social diário, não há motivo para esse entrar em quarentena. Se um positivou, mas está todo mundo no vestiário, sem o distanciamento, aí é preciso pensar".
Exemplo da Alemanha: "A Alemanha, que tinha números fantásticos, não tinha hospitais sobrecarregados, cumpriu bem as normas e começou a exercer a retomada das atividades. Mas isso aconteceu muito mais por pressão política e econômica, sendo mais rápida do que a Merkel (chanceler da Alemanha) queria. O que está acontecendo? Aumento de casos. Estavam em 0,7 de contágio por pessoa. Já estão em 1,0 agora e a projeção é aumentar. Atingindo 1,2 de contágio por pessoa, a Alemanha, que era o modelo, esgota até o fim de junho ou julho os seus leitos de UTI. E agora que as pessoas voltaram, então tem uma pressão política pra não fechar de novo, tudo porque fizeram muito rápido".
"Vamos supôr que haja uma liberação de presença de público com 10% da capacidade e distanciamento social. Você iria? Permitiria que seus filhos fossem? Creio que não. E imagine o trabalho que a polícia teria. Encontrará pessoas que vão querer sentar juntos, outros vão se aproximar em determinados momentos do jogo. Como controlar tudo isso?", questiona.
"Infelizmente, estamos diante de algo que nunca ninguém viveu. Estamos primeiro tentando entender qual vai ser o momento adequado para o retorno aos treinos e só depois vamos pensar nos jogos. As curvas no Brasil são curvas de crescimento, então precisamos de suporte legal do Comitê de crise da COVID-19 dentro do governo do Estado, dentro do que a OMS propõe, para que tudo siga de acordo com o que a medicina impõe e, nesse momento, nenhuma orientação médica prevê data para retorno".
Fonte: Rodrigo Fragoso / Esporte Interativo23/11
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