Texto por Colaborador: Redação 03/11/2024 - 05:38

Estamos em Porto Alegre. O dia é 7 de janeiro de 2038. Após uma terrível crise — que culminou em um inédito rebaixamento à terceira divisão nas temporadas precedentes — o Grêmio, enfim, comemora seu retorno à Primeira Divisão. Vivendo uma gestão revolucionária sob o comando do presidente Eduardo Bueno, o Peninha, o Tricolor do Humaitá choca alguns, mas nem todos. Conforme publicação em seu site oficial, gremio.net, está anunciado o novo departamento de futebol na Arena: Andrés D’Alessandro será o diretor de futebol. Na gestão de vestiário, Índio fará a interlocução entre as pastas. Para a Coordenação de Futebol, Paulo Roberto Falcão e Clemer, misturando gerações, desenvolverão um trabalho multidisciplinar, enquanto Iarley será o coordenador da base.

Após o anúncio oficial, choveram elogios ao genial mandatário gremista, que viu seu “Grêmio Itaú” (lembre-se que virou SAF em 2032) vencer o primeiro Gre-Nal da temporada por 2 x 1. Após a partida válida pela fase inicial do Gauchão, Andrés D’Alessandro, efusivamente, comemorou o triunfo gremista berrando aos prantos na entrada do vestiário: “AQUI É GRÊMIO, PORRA!” Falcão, sempre comedido, apenas esboçava sorrisos discretos pelos cantos dos lábios, evitando constrangimentos aos nobres visitantes. O ambiente no Humaitá, por sinal, vivia um dia único no grande clássico rio-grandense: tanto colorados quanto gremistas aplaudiam seus profissionais e ídolos. A Geral, eufórica, cantava “D’Alessandro es solo alma castelhana”, com sotaques meio portunholescos. No setor oposto, a Popular, em português, respondia: “Ado, ado, ado, D’Alessandro é colorado.” Gritos eufóricos e politicamente corretos criavam um ambiente de irmandade entre os outrora rivais mortais. O estado de harmonia chegou a tal ponto que um unicórnio — agora oficialmente o novo mascote da dupla Gre-Nal, com o intuito de evitar discordâncias ou antíteses entre os rivais — entrou em campo, simbolizando o novo ambiente mitológico futebolístico. Seu notório chifre em espiral representava os corações doravante de milhões de torcedores uníssonos em apenas uma direção.

Páginas posteriores do jornal Zero Kola avaliavam filosoficamente este novo modelo social vigente no esporte bretão. Prezando somente pelo profissionalismo, agora — dizia o filósofo Cuca Burrê — os humanos conseguiram esquecer essa guerra simbólica esportiva. O inconsciente não está mais na moda. O esporte, como sinônimo de pedagogia e símbolo cultural, dá espaço ao amistoso businessman. Todos são apenas profissionais. Até a vaia, considerada atualmente agressiva, pode ser punida com seis jogos sem mando de campo pelo STJD.

Este mundo liso, sem rusgas, sem peso corporal e qualquer dialética — logo, prisioneiro da mesmicidade — tornou as paixões e arquétipos humanos meros conceitos ultrapassados, transformando, no seu vir-a-ser, Grêmio e Inter em meras logomarcas sem identidade, capitalizando o que há de melhor (ou pior) na sociedade de 2038.

É claro que D’Alessandro justificou sua ida ao Imortal como uma escolha meramente profissional. Dizia ele, muito bem explanado, que “o Grêmio ofereceu um projeto” e que, como todo profissional, fazia uma escolha racional. Estava sacramentado, portanto, o fim do antigo futebol onde personagens eram transfigurados em ídolos. A idolatria, diziam muitos já nesta época, tinha um preço muito alto — o de justamente não poder ser precificada em qualquer espécie. Já em 2038, onde somente a abstração absoluta — conhecida como dinheiro — mensura tudo e todos, as interações acabam ponderadas como meras posturas de interesses individuais. Para quê alteridade? Sendo ela essencialmente oposição e negação do eu — nesse sentido, geradora de perspectivas — praticamente inexiste. Ainda assim, quando podendo ser comprada, será abafada.

Pensando justamente neste novo modelo, o atual mandatário do Sport Club Internacional (ainda não SAF, mas na mira de investidores porto-riquenhos), Fabrício Carpinejar, confirmou que abriu negociações para trazer Renato Portaluppi ao Beira-Rio. A ideia, inclusive, é bem vista na Arena ex-OAS, com efusiva demonstração de apoio.

Depois desta longa jornada por um possível futuro distópico, caro viajante do presente, vamos tentar ponderar um pouquinho?

Percebam que, mesmo que possamos encontrar oportunos argumentos para criticar ou discordar de algumas ações dos gremistas contra Roger Machado na Calçada da Fama, há um exagero e um puritanismo — que se mostra completamente oco de qualquer conceito — cômico na mídia oficial, beirando a banalidade, com palavras autoritárias largadas ao vento. Constatem que não houve violência alguma contra ninguém, apenas protestos, manifestações contrárias — uma ação muito mais de constatação frente a uma referência do que de ataque ao valor material em si, a evidente única régua atual da sociedade, vazia de significado ontológico. Nessa perspectiva, alega-se um ataque ao “patrimônio”, mas a pergunta que se deve fazer está por trás disso: qual o valor e o significado de um monumento que não faz jus ao status de ídolo? A propósito, protestos às vezes visam justamente questionar certos valores ou status quo tidos como estabelecidos. Teria esse artefato de concreto — inanimado ou possuidor de algum valor econômico — serventia para quê? Para quem exatamente? Qual o significado humano — e não meramente financeiro — para nós?

Além disso, a virtude da idolatria pode ser alta demais para meros mortais ou estar fora do nosso plano pessoal. Não passando do limite literal contra qualquer espécie senciente, qual o problema, até aqui, por querer tirá-lo da Calçada da Fama? Ele deveria ser aplaudido pelos torcedores rivais? É isso?

Não se trata de apagar sua história como ser humano, mas de suprimir sua cronologia como gremista — sim, é óbvio — e que bom que é assim. É justamente tal oposição que cria uma identidade. Sem ela, naufragamos perdidos na tela da existência. Os gremistas, dessa forma, estão simplesmente defendendo a sua identidade, que está muito além de atitudes singulares e individuais, mas que dialoga no universal de uma coletividade movida a metafísica — não uma abstração. D’Alessandro teria o mesmo destino se vestisse a camisa gremista por mero profissionalismo. Diferente de Tinga, que ousou expor sua parte sentimental — fator que sempre acaba alargando certas arestas da rivalidade — não foi este o caso do atual treinador alvirrubro, pelo menos até agora. Diante destes elementos, temos expostas duas vertentes. Se o profissionalismo nos faz sobreviver e exercer uma função com competência e dignidade, a paixão e as pulsões humanas nos fazem viver, respirar, transpirar, acordar com bom humor todos os dias e contar histórias arrebatadoras que jamais serão esquecidas. A primeira até pode ser retirada do futebol e de momentos da vida; a segunda, se não vivida… haverá vida? No sentido mais cósmico e transcendental que se queira dar à palavra.

Ao se arriscar, Roger Machado pode perpetrar mais um capítulo desta maravilhosa rivalidade. Ao escolher o SCI, trouxe a ira de muitos gremistas — e isso é realmente lindo de se ver. Os tricolores, por outro lado, estão indignados e totalmente furiosos com sua vinda ao Beira-Rio, o que é absolutamente compreensível e (pasmem) tem até sua beleza. Somente o que realmente nos toca pode revoltar; o resto é indiferença (e isso deixamos para o Edinho). No próximo Gre-Nal, em 2025, Roger será recebido na Arena com vaias, em uma linda história de traição, superação e competência. No fim, se seguir sua trilha gloriosa e marcar sua carreira, poderá resgatar sua Calçada da Fama no Humaitá — ou mesmo concretá-la em qualquer área do Gigante, mesmo que só vença um Gre-Nal pelo Colorado. Cá entre nós... vamos ser honestos? O Roger tem cara de gaúcho (colorado), pinta de gaúcho (colorado), raça de gaúcho (colorado) — e é gaúcho (colorado). Não há mais dúvidas.

Por @celta_bardo

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